Posted: 25 Apr 2012 02:40 AM PDT
Aqui vai, meu amigo, a entrevista rápida
que você solicitou ao velho jornalista desencarnado
com uma suicida comum. Sabe você, quanto eu, que
não existem casos absolutamente iguais. Cada um de
nós é um mundo por si. Para nosso esclarecimento, porém,
devo dizer-lhe que se trata de jovem senhora que,
há precisamente quatorze anos, largou o corpo físico,
por deliberação própria, ingerindo formicida.
Mais alguns apontamentos, já que não podemos
transformar o doloroso assunto em novela de grande
porte: ela se envenenou no Rio, aos 32 de idade, deixando
o esposo e um filhinho em casa; não era pessoa de
cultura excepcional, do ponto de vista do cérebro, mas
caracterizava-se, na Terra, por nobres qualidades morais,moça tímida, honesta, operosa, de instrução regular e
extremamente devotada aos deveres de esposa e mãe.
Passemos, no entanto, às suas onze questões e
vejamos as respostas que ela nos deu e que transcrevo,
na íntegra:
A irmã possuía alguma fé religiosa, que lhe desse
convicção na vida depois da morte?
Seguia a fé religiosa, como acontece a muita gente
que acompanha os outros no jeito de crer, na mesma
situação com que se atende aos caprichos da moda. Para
ser sincera, não admitia fosse encontrar a vida aqui,
como a vejo, tão cheia de problemas ou, talvez, mais
cheia de problemas que a minha existência no mundo.
Quando sobreveio a morte do corpo, ficou inconsciente
ou consciente?
Não conseguia sequer mover um dedo, mas, por
motivos que ainda não sei explicar, permaneci completamente
lúcida e por muito tempo.
Quais as suas primeiras impressões ao verificar-se
desencarnada?
Ao lado de terríveis sofrimentos, um remorso
indefinível tomou conta de mim. Ouvia os lamentos de
meu marido e de meu filho pequenino, debalde gritando
também, a suplicar socorro. Quando o rabecão me arrebatou
o corpo imóvel, tentei ficar em casa, mas não
pude. Tinha a impressão de que eu jazia amarrada ao
meu próprio cadáver pelos nós de uma corda grossa.
 Sentia em mim, num fenômeno de repercussão que não
sei definir, todos os baques do corpo no veículo em correria;
atirada com ele a um compartimento do necrotério,
chorava de enlouquecer. Depois de poucas horas,
notei que alguém me carregava para a mesa de exame.
Vi-me desnuda de chofre e tremi de vergonha. Mas a
vergonha fundiu-se no terror que passei a experimentar
ao ver que dois homens moços me abriam o ventre sem
nenhuma cerimônia, embora o respeitoso silêncio com
que se davam à pavorosa tarefa. Não sei o que me doía
mais, se a dignidade feminina retalhada aos meus olhos,
ou se a dor indescritível que me percorria a forma, em
meu novo estado de ser, quando os golpes do instrumento
cortante me rasgavam a carne. Mas o martírio
não ficou nesse ponto, porque eu, que horas antes me
achava no conforto de meu leito doméstico, tive de
agüentar duchas de água fria nas vísceras expostas, como
se eu fosse um animal dos que eu vira morrer, quando
menina, no sítio de meu pai... Então, clamei ainda
mais por socorro, mas ninguém me escutava, nem via...
Recorreu à prece no sofrimento?
Sim, mas orava, à maneira dos loucos desesperados,
sem qualquer noção de Deus... Achava-me em
franco delírio de angústia, atormentada por dores físicas
e morais... Além disso, para salvar o corpo que eu mesma
destruíra, a oração era um recurso de que lançava
mão, muito tarde.
Encontrou amigos ou parentes desencarnados, em
suas primeiras horas no plano espiritual?
Hoje sei que muitos deles procuravam auxiliar-
-me, mas inutilmente, porque a minha condição de suicida
me punha em plenitude de forças físicas. As energias
do corpo abandonado como que me eram devolvidas por
ele e me achava tão materializada em minha forma espiritual
quanto na forma terrestre. Sentia-me completamente
sozinha, desamparada...
Assistiu ao seu próprio enterro?
Com o terror que o meu amigo é capaz de
imaginar.
Não havia Espíritos benfeitores no cemitério?
Sim, mas não poderia vê-los. Estava mentalmente
cega de dor. Senti-me sob a terra, sempre ligada ao corpo,
como alguém a se debater num quarto abafado,
lodoso e escuro...
Que aconteceu em seguida?
Até agora, não consigo saber quanto tempo estive
na cela do sepulcro, seguindo, hora a hora, a decomposição
de meus restos... Houve, porém, um instante em
que a corda magnética cedeu e me vi libertada. Pus-me
de pé sobre a cova. Reconhecia-me fraca, faminta, sedenta,
dilacerada... Não havia tomado posse de meus próprios
raciocínios, quando me vi cercada por uma turma
de homens que, mais tarde, vim a saber serem obsessores
cruéis. Deram-me voz de prisão. Um deles me notificou
que o suicídio era falta grave, que eu seria julgada em
corte de justiça e que não me restava outra saída, senão acompanhá-los ao Tribunal. Obedeci e, para logo, fui por
eles encarcerada em tenebrosa furna, onde pude ouvir o
choro de muitas outras vítimas. Esses malfeitores me
guardaram em cativeiro e abusaram da minha condição
de mulher, sem qualquer noção de respeito ou misericórdia...
Somente após muito tempo de oração e remorso,
obtive o socorro de Espíritos missionários, que me retiraram
do cárcere, depois de enormes dificuldades, a fim
de me internarem num campo de tratamento.
Por que razão decidiu matar-se?
Ciúmes de meu esposo, que passara a simpatizar
com outra mulher.
Julga que a sua atitude lhe trouxe algum benefício?
Apenas complicações. Após seis anos de ausência,
ferida por terríveis saudades, obtive permissão para visitar
a residência que eu julgava como sendo minha casa no
Rio. Tremenda surpresa!... Em nada adiantara o suplício.
Meu esposo, moço ainda, necessitava de companhia e
escolhera para segunda esposa a rival que eu abominava...
Ele e meu filho estavam sob os cuidados da mulher que
me suscitava ódio e revolta... Sofri muito em meu orgulho
abatido. Desesperei-me. Auxiliada pacientemente,
contudo, por instrutores caridosos, adquiri novos princípios
de compreensão e conduta... Estou aprendendo
agora a converter aversão em amor. Comecei procedendo
assim por devotamento ao meu filho, a quem ansiava
estender as mãos, e só possuía, no lar, as mãos dela, habilitadas
a me prestarem semelhante favor... A pouco e  pouco, notei-lhe as qualidades nobres de caráter e coração
e hoje a amo, deveras, por irmã de minha alma...
Como pode observar, o suicídio me intensificou a luta
íntima e me impôs, de imediato, duras obrigações.
Que aguarda para o futuro?
Tenho fome de esquecimento e de paz. Trabalho
de boa vontade em meu próprio burilamento e qualquer
que seja a provação que me espere, nas corrigendas
que mereço, rogo à Compaixão divina me permita nascer
na Terra, outra vez, quando então conto retomar o ponto
de evolução em que estacionei, para consertar as terríveis
conseqüências do erro que cometi.
...................................................................................
Aqui, meu caro, termina o curioso depoimento
em que figurei na posição de seu secretário.
Sinceramente, não sei por que você deseja semelhante
entrevista com tanto empenho. Se é para curar
doentia ansiedade em pessoa querida, inclinada a matar-
-se, é possível que você alcance o objetivo almejado.
Quem sabe? O amor tem força para convencer e instruir.
Mas se você supõe que esta mensagem pode servir
de instrumento para alguma transformação na sociedade
terrena, sobre os alicerces da verdade espiritual, não
estou muito certo quanto ao êxito do tentame. Digo
isso, porque, se estivesse aí, no meu corpo de carne,
entre o frango assado e o café quente, e se alguém me
trouxesse a ler a presente documentação, sem dúvida
que eu julgaria tratar-se de uma história da carochinha.


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